Veneno
[Crônica] [Poesia]
Decidi me envenenar em palavras. Com poesia, crônica, o que for; cada ato de escrever, me mato, pouco a pouco. É lento, sim, e doloroso, uma dose de veneno tomada com cosciência um dia após o outro, até me consumir por inteiro. Sangro a tinta da caneta, meu respirar chia o barulho do dedilhar no teclado, regurgito palavras de pixels. A cada dia, sinto que menos vivo, enquanto me deixo continuar a escrever.
Mas que forma bela de morrer! É como se eu explodisse de dentro para fora, em câmera lenta, como fogos de artifício; como se brotassem flores e cogumelos de dentro das minhas entranhas, se alimentando de mim até que eu me desfaça por inteiro e sobre somente um jardim. Um jardim de palavras, uma explosão de sentimentalismos fúteis, de angústias traduzidas em versos e prosas. O sentimento pipoca no papel como o som de bala de revólver me atravessando. As emoções me transpassam, inflam meu estômago e recortam a pele, arrancam-se das minhas víceras e se espalham ao mundo, e de repente são textos, subtextos, linhas e entrelinhas.
Me disseram que a escrita curava, que literatura é um remédio, mas já sou sabido o bastante para entender que todo remédio é droga, e toda droga é veneno, na dose certa. E o que é o escrever se não o se remoer e afogar-se nos próprios sentimentos? Eles não se vão com o papel, mas ficam e retornam; penso por vezes “eu não devia ter escrito isso” ou “devia ter escrito diferente”. Não devia. O que escrevi, o que disse, é que eu era e não sou mais. Não sou mais nada depois das palavras. A escrita arranca de mim cada pedaço de mágoa, de dor, de ânsia. Arranca também tesão, desejo, sonhos. Ela me arranca de mim mesmo. Tudo vira palavra, a cada dose que me permito externar, a cada vocábulo, a cada oração que se forma.
Quero me envenenar de poesia até que não sobre mais nada destas coisas dentro de mim, que eu me esvazie por completo, que me torne casca oca, o coração se desmontando pedacinho por pedacinho, como um conjunto de lego, um quebra-cabeça que perde a forma até que não se reconheça mais que imagem trazia. Quero que meu cérebro se derreta em lirismo, quero que minha literatura corroa tripas, pulmão, fígado; quero me engasgar com aforismos, e sentir a garganta arder enquanto vomito metáforas, que carregam consigo toda carne da traquéia à língua.
Mas não vou me tornar vazio para me preencher de algo a mais; não me enveneno para me purificar, nem me abandono por inteiro esperando a experiência de transcender. Não. Novos sentimentos, amores, verdades, renego tudo o que for. Quero a morte lenta do torna-se verbo. Vou me desfazer até que não sobre mais nada de mim em mim. Vou me desfazer aos poucos, lentamente, até que só reconheçam de mim as palavras.